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É tempo de penitência! b5a10



Em época de quaresma, o cronista Sérgio Ayres fala sobre a penitência para os sete pecados capitais 

 

 Obra do artista plástico pernambucano Lula Cardoso Ayres - Reprodução autorizada pelo autor.

 

Sérgio Cardoso Ayres

Membro da Academia Barbacenense de Letras

 

Naquele ano, não sei por qual motivo, o mês de abril chegou bem mais cedo do que se esperava no alto da Serra da Mantiqueira e, também, em alguns baixios em seu entorno banhados pelo sol em seu eio de leste a oeste. E ele não veio de mãos dadas com o outono e nem agasalhado pela friagem, como era de costume. Há algum tempo que as coisas fugiam da normalidade como o diabo foge da cruz – ditado que os antigos usam para fixar bem os opostos e as consequências das escolhas que fazemos na vida. Não podemos esquecer que o anjo do mal atualmente costuma usar de muitas artimanhas para arrebanhar novas almas por aí. E olhem atentos por cima dos óculos para miopia que a quaresma já se encaminhava resoluta para a Semana Santa como uma procissão desce uma ladeira íngreme, dessas de cidades históricas de Minas Gerais em que o pé-de-moleque é o rastro descalço dos caminhos dos tropeiros. Isso, muito antes do amendoim fazer parte de qualquer doce.

O manto da tradição cristã que ocultava nas igrejas os santos em seus altares e nichos era o exemplo vermelho do barroco e seus corriqueiros pecados terrenos. As missas, apesar de os sinos dobrarem várias vezes ao dia como um chamado insistente, recebiam muito mais os idosos e seus temores do que os jovens e suas dúvidas. Coisas da idade que nem os santinhos rechonchudos e de rostos grotescos conseguem explicar no tête-à-tête atemporal com o mestre Aleijadinho. Nesta época marcada pela penitência, diferente de todas as outras do ano, ser fiel a uma crença é itir que temos que sofrer para merecer algo especial quando já perdemos os cinco sentidos. Mesmo assim, glorificar é tão terreno quanto celestial. E a inclinação do eixo da Terra, como um deboche depois do verão, era a prova definitiva de que cair em tentação é por demais humano.

A fila para confissão era enorme e cada semblante denunciava seus erros. Era praticamente impossível não supor que cada um dos postulantes a uma vaga de confessante não tenha lá seus penduricalhos entre as linhas sem destino dos chamados pecados capitais. Gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça e soberba. Que atire a última pedra sabão aquele que não se perdeu com gosto em algumas dessas contradições ou prazeres mundanos. Trocá-los por temperança, generosidade, decência, mansidão, altruísmo, dedicação e humildade requer muito mais do que apenas altruísmo e desprendimento. É preciso ter fé, esse sentimento de quem não duvida. Mas pecar supõe o livre-arbítrio da escolha, da tentativa, do erro em busca do acerto. De ficar frente a frente ao pastor, desde que o confessionário e suas sombras foram abolidos, e assumir os erros pelas pupilas dilatadas e olhos avermelhados. Obter o perdão, o indulto, a remissão. Não importa que sejam duas, trinta ou cem orações. Entre o arco do cruzeiro e o retábulo existem mais mistérios do que um fiel pode supor na penitência da quaresma.

Em meio a tantos pensamentos, nem viu o tempo ar e a fila andar. Ela era a próxima a relatar seus erros e dissabores na preparação para a vida eterna. Nervosa e pensando nas virtudes como compensação aos erros, Generosa reou os pecados e deixou tudo afiado na ponta da língua sempre afiada. Avançada na idade, mas atrasada nas ideias. Nunca uma beata. Isso não. Penitente, sim! Só a dúvida que a consumia como um pecado mortal desde a juventude: revelar em busca do perdão a paixão platônica que a atormentava como uma febre que termômetro nenhum poderia mensurar. Sentou-se em frente ao padre e nem percebeu o ar de cansaço no rosto do sacerdote após horas de trabalho como ouvidor dos pecados alheios. Como também não ouviu o badalar do sino na hora exata em que entregou sua alma ao destino. Pigarreou e, num frenesi, relatou chorando, soluçando e tossindo, tudo ao mesmo tempo, as dores do coração de uma paixão proibida que sufocava a sua alma há mais de 30 anos. O sacerdote, de forma repentina, como que acordasse de um transe provocado pela exaustão, olhou-a e ao entorno com curiosidade e desentendimento. Refeito, antes de julgar o arrependimento alheio para a expiação do pecado, sussurrou com aquele sotaque clássico de religioso estrangeiro do interior de Minas:

- Por favor, senhora, pode repetir? É que não entendi direito. 

 

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