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Crônica | José, o Papa e o Jubileu r1b1j



O cronista Sérgio Ayres visita ao seu modo literário o Jubileu de São José Operário

JOSÉ, O PAPA E O JUBILEU

Sérgio Cardoso Ayres

Membro da Academia Barbacenense de Letras

 

Nascido no mesmo ano em que o Jubileu de São José Operário foi criado, em 1964, mesmo ano do golpe militar que derrubou o presidente João Goulart, José chegava à idade de 61 anos um pouco cansado e tendo na lembrança a memória do seu pai, que não aceitava a ditadura, mas repetia o clichê do “hay gobierno, soy contra”. Não que já se considerasse um idoso ou um comunista do interior. Isso, não! Nem mesmo estava sem paciência do sobe-e-desce diário nos morros de Barbacena e nem repleto de crença com o atual governo. Mas os dissabores e sabores da vida, que variam de intensidade conforme os acontecimentos, ora o gosto amargo da dor de perda de um familiar querido, ora um sabor de chocolate na sobremesa da Páscoa, tinham deixado marcas profundas em seu ser. A verdade é que nunca estamos satisfeitos com o que somos – essa decepção já é quase uma regra em se tratando das frustrações que carregamos nas costas como uma corcunda imperceptível que nem Quasimodo ostentaria em sua busca pelo amor de Esmeralda. E José também não estava de acordo com a situação! Nem Hegel teria razão em sua trindade de tese, antítese e síntese, em uma tradução barata de pai, filho e espírito santo, para construir sua realidade em um bairro operário a partir da ideia de infelicidade ao ser exatamente o que nunca esperou de si mesmo. A maior decepção da vida é sempre a de consigo mesmo.

Bem cedo, entre uma e outra xícara de café, José refletia sobre a morte do Papa Francisco enquanto irava a cúpula da Basílica envolta pela neblina tardia que só chegou quase que no final do mês de abril. Se lá fora os ambulantes perambulavam antes dos compradores chegarem com suas moedas, dentro de sua casa, na penumbra não provocada pelas sombras que escondem um sol que ainda não nascera, e, sim, pela escuridão que insistia em dominar sua alma, ele vasculhava o ado na esperança de uma anunciação qualquer que pudesse acender o presente cotidiano como a luz de um poste solitário num beco sem saída. Sua filosofia, compreendida por uma parca existência no vale entre os bairros São Pedro, antigo Alto do Cangalheiro, e o Monte Mário, este em homenagem ao Barão de Monte Mário, o desconhecido Marcelino Pereira, seu pensamento também compreendia digressões sobre morrer ao comer manga com leite e ter muito azar ao ar debaixo de uma escada. Isso junto com anistia, Trump, Flamengo e apostas diárias no jogo do bicho.

Abriu a janela da sala e, sem os óculos para emoldurar uma avançada e crescente miopia, apenas distinguia cores e uma ou outra forma com imperfeição. De tanto apoiar os cotovelos no parapeito da janela, a posição acabou por reacender as velhas dores lombares oriundas do tear da antiga fábrica – as mesmas que sempre o incomodaram na curta existência depois do cinquentenário. Deixou a manhã ar lentamente como quem não tem pressa de colocar a vida em ordem na gaveta do armário, apesar do pozinho de madeira produzido pelos cupins de anos e anos. Da mesma forma, à tarde, não esboçou qualquer pressa no que diz respeito ao desperdício do tempo que dispunha. Foi até a padaria, comprou um bolo, no supermercado, um pacotinho de vela de aniversário, e resolveu dar uma volta despretensiosa pelas barracas do Jubileu. Caminhando distraído enquanto se deliciava com uma maçã do amor, reencontrou-se com casais e amigos do tempo de rapaz, dias em que o Jubileu ainda tinha como destaque muitas as, macarrão na chapa oleosa, paqueras e ferramentas de qualidade duvidosa. Por um álbum de minutos, colorido e em preto e branco, recordaram do ado.

Após a despedida e já em casa, José colocou o bolo na mesa, desempacotou, enfiou delicadamente a vela, acendeu e, rindo, deu a si mesmo parabéns. Pensou em cantar o “com quem será”, mas não tinha humor para tanto. Partiu uma gorda fatia do bolo de fubá, achou meio seco, porém até gostoso. Voltou com a miopia à janela, sentiu a dor na coluna e, aborrecido pelos 61 anos, deitou-se e nem precisou do velho remedinho. Adormeceu tão profundamente que o dia seguinte amanheceu e não o encontrou mais. E nem a Francisco.

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